sábado, 28 de maio de 2011

Dark Glasses

       Ele sempre achou que tinha o dom de ler olhares. Ao contrário de todos que se diziam fazê-lo, ele não olhava fixamente nos olhos das pessoas para analisá-las. Para ele, ficar mais que três segundos no olhar de alguém era perigoso, era correr o risco de ser aprisionado e nunca mais sair. Quando se trata de olhos, todo cuidado é pouco! Na verdade, ele tinha medo de encontrar alguém como ele. Então, ele desviava o olhar fechando as janelas. Há quem diga que os olhos são as janelas da alma.
      Era justamente isso que o encantava! Entrar sorrateiramente na alma das pessoas e ver o que elas eram por dentro. Um encantador serviço de espionagem que requeria mais tempo que se imagina. Mas, depois de enxergá-las por dentro ele via que eram iguais as outras e enjoava delas. Como as pessoas eram tão diferentes por fora e tão iguais por dentro?
       A cada pessoa um mistério novo. Em pouco tempo ele passou a colecioná-las. Ele se sentia seu dono por conhecê-las intimamente e toda vez que alguém olhava para ele, ele desviava o olhar. Foi então que ele encontrou seu maior desafio. Uma menina nova recém-chegada estava sentada à mesa com seu lindo par de óculos escuros. Será que depois de tanta prática ele conseguiria ver através das lentes negras da menina?
        Ele puxou um assunto qualquer e ela respondeu. Os dois dialogaram eloquentemente. Ele se surpreendeu com sua maneira de falar e sorrir. Resolveu não analisá-la por aquele dia. Seria muito triste perder uma pessoa como ela tão rapidamente. Ele se despediu e foi embora.
       Nos dias seguintes ela estava lá, na mesma hora, no mesmo local. Eles não haviam marcado nada, mas de alguma forma eles sentiam que deviam estar ali. Sempre de lentes escuras a menina olhava fixamente para o rapaz que desviava o rosto, ela sorria.
      Ele decidiu que já era hora de conhecer aquela menina. Sexta-feira. Se ele não gostasse teria o final de semana para sentir saudade e depois não apareceria mais! Ele olhou fixamente nas lentes da garota sem ouvir uma palavra do que ela dizia, por um momento ele achou que estava conseguindo. Apenas ilusão. O que estaria acontecendo de errado?         
         Por qual motivo ele não conseguia ler através dela?
         Agora era uma questão de honra! Sua meta era sabê-la! Depois de muito tempo todas as tentativas falharam e ele estava completamente envolvido. O mistério que aquela garota lhe passava era excitante.
        Ele pediu que ela retirasse os óculos para que ele pudesse ver seus olhos, um mês havia se passado e ele ainda não tinha visto seus olhos. Ela então perguntou se ele queria ler sua alma. A força dessa epifania atingiu-lhe como um dardo. Teria ela percebido? Em que parte ele falhou?
        - Você é daqueles que gostam de ver através das pessoas, não é? - disse ela- Eu também sou assim! Só que eu aprendi a ler o que sai da boca das pessoas, eu aprendi a ler o som de sua voz. Todas as vezes que olhei para você, você disfarçou. Eu senti sua voz se esquivando de mim, mas no primeiro dia que você veio, eu lhe conheci por inteiro.
      Ele não acreditava naquilo tudo. Estava embasbacado olhando para a menina que sorria.
         Sabe porque você nunca conseguiu me conhecer? - disse ela.
         Ela tira os óculos e revela-lhe a alma. Uma má formação gestacional a fez nascer cega. Suas pálpebras estavam fechadas como se ela estivesse dormindo, ela as abriu e ele pôde ver seu belo par de olhos castanhos.
- Eu nunca consegui ver, meu caro! Nem por três segundos. Nasci com as janelas da alma fechadas e tive que aprender a viver apenas com o que escuto. Sabe, cada pessoa é como um livro fechado. Há uma capa e um título que podem dizer muito ou quase nada sobre o conteúdo, geralmente, algumas possuem um resumo sobre elas na capa de trás, ou só uma opinião de gente menos medíocre. Como eu nunca pude ver esses elementos, precisei ler toda a obra para conhecê-las. Você só vê os livros na estante, dentro do saquinho plástico e isso te impede de ir além. Agora que você me conheceu eu te deixo livre para ir embora.
Ele não conseguiu mover um músculo sequer, segurou suas mãos e sorriu. Estava desfeito o mistério, mas fortalecido o encanto. “Amá-la foi fundamental para entendê-la pois só quem ama tem ouvido capaz de ouvir e entender as estrelas”.

Entre a cruz e o Machado

Para onde foi toda a minha corte?
Onde estão meus súditos?
O castelo está vazio.
Na mesa de pedra fotografias em preto-e-branco.
Bonitas fotos, tristes sorrisos.
Eu sou um rei sem reino
Que no reino não mando nada.
Já ouvira isso em algum lugar.

Onde fica o mapa de Pasárgada?
Ah, eu não conheço o rei.
Onde está o pó de pirimpimpim?
Não há fadas para me fazerem voar,
Não há ninguém.
Vai ser gauche sozinho!

Na janela da torre vejo pessoas andando
Eu grito por elas, mas ninguém me ouve
Eu poderia pular, será que doeria muito?
Será que eu voaria?

Na mesa, cartas escritas à minha solidão.
-Lorde Gray, o senhor deseja mais chá?
Sua pintura não se modificou.
E agora, José? O fogo apagou!

O espelho psiqué me revelou mais uma vez
que mesmo nessa torre sem ponteiros, o tempo passa
Pronto, passado.
Na verdade, acho que vivo no passado.

Só agora te entendo, doce Ismália.
É muito triste ser o único a ver o fogo arder
Sentir a ferida que dói
E não contentar-se de estar contente.
E ninguém ver o enterro de nossa última quimera

Essa minha morte e vida severina.
O peso dessa mão que afaga e que apedreja,
Dessa terra sem sabiás,
De heróis sem nenhum caráter,
onde se deve disfarçar os olhos de ressaca
e fingir que é dor a dor que deveras sente!

Funesto Ignoto está morto

     Há muito tempo que venho querendo cometer esse crime e não sabia bem por onde começar. Na verdade, ainda não sei. Fazia tempo que ele vinha me incomodando.
Tudo começou com uma tentativa de defesa por ver o mundo de forma diferente. Um mundo repleto de incertezas, dúvidas e abalos que davam grande inspiração para dizer bonitas palavras de repulsa ou de amor. Mas, tudo mudou. Talvez, o mundo continue o mesmo. Ainda existem os mesmos elementos, porém, não mais, no meu mundo.
    Minha vida deu tantas reviravoltas que ser o Funesto Ignoto se tornou algo pesado e difícil. Por mais que eu tentasse forçar a barra e pensar como ele ficava mais evidente que nós decidimos trilhar caminhos diferentes.
     Funesto se tornou diferente de mim e eu já havia percebido isso há vários dias. Eu só me dei conta disso quando vimos a morte de perto. Eu tremi, sofri, chorei. Ele se recarregou perante sua criadora. Morrer só é bonito metaforicamente!
Me desculpem as linhas bagunçadas, mas quem nunca assassinou alguém não vai me entender, principalmente, quando se está matando a si mesmo. Nunca pensei que se matar fosse tão difícil. Matar um personagem é suicídio?
     Eu estava realmente disposto a matá-lo quando olhei profundamente em seus olhos. Eram os meus! Era meu rosto, era eu. Foi então que percebi que ainda éramos os mesmos. Não aceitar sua evolução seria muito egoísmo da minha parte, considerando todas as vezes que o deixei sozinho.
     Fizemos as pazes, por enquanto.
    Nosso acordo de cavalheiros estabelece que eu falarei quando sentir vontade e da forma que sentir vontade. Mesmo que fiquem ruins! Ele costura para dentro, mas eu tenho a necessidade de coser para fora.
     E assim, vamos vivendo nossa simbiose estranha.
Funesto Ignoto. Tecnologia do Blogger.