domingo, 5 de setembro de 2010

Intra-transporte


Ela ainda era jovem, porém, já se percebiam alguns sinais de idade. Não lembrava há quanto tempo tinha estado ali. Tudo estava tão frio, tão abandonado. Por que ela sentia tanta dor no peito? Se ao menos houvesse luz. Onde haveria luz? Talvez não existisse e, se isso fosse verdade, ela estaria perdida e sozinha no local em que somente ela possuía o mapa de saída. Tentou gritar, mas era inútil. Ninguém poderia salvá-la daquele lugar, lá não havia heróis, não havia fadas nem finais felizes. Arriscou pequenos passos, caminhou tateando o escuro. O relevo era irregular e ela ainda sentia muito frio, mesmo assim, seguir em frente lhe dava a ideia de alcançar aquilo que procurava. Andando mais um pouco tal foi sua felicidade ao notar algumas réstias de luz. Ao apertar os olhos para discernir um pouco de algo enxergou uma criança sentada numa poltrona. A menina sorria, enquanto olhava para uma senhora sentada a sua frente, essa, não mais sorria, seus olhos estavam secos e sua expressão estava apática. Quem seriam aquelas pessoas? Como elas estariam ali?

- Vocês moram aqui? – perguntou a moça.
- Sim – responderam simultaneamente a criança e a velha.
- Por que vocês não acendem as luzes? Está escuro aqui! – arriscou a moça.
- Estamos na luz que nos mantém vivas – respondeu a velha.
- Quase nunca faz sol aqui! Ainda bem que existem duas janelas que permitem que essa réstia de luz nos mantenha vivas – completou a garota.
- Por que vocês dizem que vivem graças a esta luz? – indagou a moça se aproximando das duas.
- Porque nós somos apenas lembranças - falou serenamente a velha senhora.
- Que brincadeira é essa?
- Querida, você ainda não sabe onde está? – ironizou a velha.
- Você nunca nos visita! – reclamou a garotinha.
- Isso só pode ser um pesadelo! – bradou a moça.
- Pesadelos? Já vi muitos deles passarem por aqui – falou a garotinha.
- Eu preciso ir embora – gritou a moça.
- Pode ir! Não podemos prendê-la! Mas, talvez essa seja a última vez que você nos veja - disse a senhora enquanto segurava o braço da moça e a fazia olhar bem fundo em seus olhos – São tão horríveis assim as imagens do seu interior? Isso mesmo! Você está no âmago do seu ser. Nesta sala estão contidos seus sonhos, seus medos.
- Foi aqui que eu vivi todos esses anos desde que você me deixou aqui. Fiquei sozinha e abandonada – gritou a garotinha, que ao mexer-se, revelou nitidamente seu rosto à moça.
- Meu Deus! Você se parece tanto...
- Com você quando era criança! – interrompeu a garotinha – Na verdade, eu sou você! Esperei dias e noites você resgatar seu lado criança. Quantas vezes eu chorei por você não mais sorrir. Com o tempo, este lugar iluminado que EU criei foi ficando escuro e escuro até que ela chegou – falou a menina indicando a velha com a cabeça.
- Aos poucos você parou de sonhar, chegou a parar de ter pesadelos e foi então que eu surgi. Talvez você não me reconheça, afinal, eu serei você daqui a cinquenta anos. Porém, é irônico ver como você já se parece comigo. Dura, ríspida, sem amor. Você reclama de frio, mas foi assim que você deixou seu interior. Essa luz que nos alimenta vem do fato do seu coração ainda bater e dos seus “olhos de fora” sentirem a claridade do mundo. Minha menina, quando aprenderá a usar os “olhos de dentro” – entristeceu-se a velha.
- Eu não podia imaginar...
- Como não podia imaginar – interrompeu a garotinha - Você se entregou a um ritmo louco de trabalho, deixou todos os seus sentimentos nessa sala. Nunca veio aqui pra ver como estava seu interior.
- Mas, você ainda está viva, então, eu não me esqueci de você, certo? – falou a moça para a garotinha.
- Não dá pra esquecer quem você foi, minha querida. Mesmo que nunca mais precise do seu passado ele estará sempre presente em você, mesmo que perdido numa sala como esta – explicou a velha.
- Por que eu estou com tanto medo? – perguntou a moça.
- Conhecer-se é arriscado. Ah! Se você tivesse vindo mais vezes – falou a velha decepcionada.
- Ai! Estou sentindo uma dor muito forte no peito – falou a moça.
- Então, sinto que devo ir embora – disse a velha.
- Não se vá! Ainda há tanto sobre meu futuro que eu preciso saber! – disse a moça.
- Querida, a pouco eu não existirei mais – disse a senhora.

A velha levantou e sorriu. Pouco a pouco seu reflexo foi desaparecendo. A moça então se levantou para abraçá-la e o máximo que ainda lhe restou foi beijar aquele rosto enrugado e antes que a moça retirasse os lábios ela partiu. Com lágrimas nos olhos ela se ajoelhou perante a menina e abraçou-a firme.

- Me desculpe por todas as vezes que eu fui negligente com você, por todas as vezes que eu deixei de curtir cada momento, de brincar como uma criança. Desculpe por não ter te trazido mais vezes para minha vida. Me desculpe pelo que fiz com você, pelo que fiz comigo. Eu destruí seu futuro enquanto construía o meu.
- Eu esperei tanto por esse momento – disse a garotinha entre lágrimas. As duas se entregaram a outro abraço. Aos poucos, a luz da sala foi ficando mais fraca, até desaparecer totalmente.

Um som muito alto e agudo mostrava que não havia mais jeito. Um senhor de roupa branca saía da sala empurrando um carrinho, suas feições estavam tristes. A paciente do quarto 163, vítima de infarto, acabara de falecer. O corpo ainda estava na sala de cirurgia e muitos médicos se espantaram ao ver que a mulher sorria e que, pelos seus olhos, escorriam lágrimas. Infelizmente, nunca pôde alcançar seu futuro, mas morreu em paz com seu passado.

1 comentários:

Ágda Sarah disse...

Irmão, tu escreve maravilhosamente bem!
Não sabia desse teu dom!
Continue nos enchendo com as suas belas construções literárias...

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